Existe um vídeo-documentário popular na Internet sobre uma tal Obsolescência planejada praticada por firmas para aumentarem suas vendas. O problema deste documentário é que ele não vai até as últimas consequências do conceito. Afinal, o que é a Obsolescência planejada? Não é apenas a condição tecnológica de um produto que ainda é “útil” (no sentido tecnológico do termo) ser descartado. Este conceito, aliás, não diz nos diz nada, já que ignora a questão dos custos econômicos.
Ironicamente, as pessoas que usam este conceito para criticar os produtores de alguns produtos, deixam de usar sua lógica de raciocínio (ainda útil) e a substituem rapidamente por uma crítica incompleta. Ao fazerem isto, procedem exatamente como aqueles que criticam. Obviamente, nem sempre o fazem de má fé, mas porque lhes falta mesmo alguma intuição no momento de sua análise. O que eu quero dizer, portanto?
Vamos levar a sério o conceito de Obsolescência planejada. Existe uma tecnologia que, de há muito tempo, funciona para alocar o que nós, economistas, chamamos de bens públicos. Trata-se da democracia. Há outras formas, como o socialismo, mas este provou-se tecnologicamente inferior há muitos anos (o que não impede alguns tiranos de o utilizarem para se locupletarem com o dinheiro alheio).
A democracia, obviamente, como fruto das ações humanas, não é perfeita. Não apenas não é perfeita, como é bastante criticada pelos mais diversos e insuspeitos escritores, filósofos e até por artistas de MPB patrocinados por verbas públicas e com grande penetração nos principais meios de comunicação. Democracia, assim, é igual a batata frita: está na boca de todos, dos mais imbecis aos mais inteligentes, sem distinção (até sua crítica é feita, portanto, de forma democrática).
Para que serve a democracia? Supostamente, para resolver problemas que o mercado não resolve. Adam Smith, dentre outros, já havia nos dado pistas sobre o que a democracia poderia fazer. Ele chamava isto de “papel do Estado (governo) na economia”. Como Adam Smith é um ser humano, obviamente, sua descrição deste papel sofreu críticas por parte de outros seres humanos não menos imperfeitos (alguns, eu diria, até meio imbecis).
Como disse meu amigo Diogo Costa, a democracia moderna é a democracia descoberta/inventada pelos norte-americanos. Pode-se chorar, espernear, bater os pezinhos, mas não adianta, é um fato histórico já ocorrido e consumado este o de que a democracia que temos veio mesmo da prática norte-americana. Posto isto, o leitor já deve estar se perguntando o que tem a democracia a ver com a Obsolescência planejada. Talvez a resposta não esteja tão óbvia e, portanto, pode ser interessante pensar em termos de exemplos.
Imagine o leitor o funcionamento de uma democracia como a que temos (por enquanto) no Brasil: há lá um presidente, senadores, deputados, governadores, prefeitos, ministros, etc. Quase todos eles são eleitos pelo voto popular. Custamos a chegar no voto popular, é verdade, mas assim também o foi nos EUA. Claro que há algumas diferenças entre os países (como o fato de que alguns juízes são eleitos lá, mas não aqui), mas isso não é muito importante para o argumento deste texto.
Ainda pensando no exemplo, o leitor pode escolher pensar nos governantes como seres binários: se pensam como o leitor, são “do bem”. Caso contrário, “do mal”. Obviamente, este conceito jogará por terra boa parte dos estudos humanos desde Freud e, para não ser acusado de anti-semita, vou desconsiderar esta hipótese e assumir que governantes são como nós: possuem interesses próprios e nem sempre estão preocupados em fazer o que lhes pedem os eleitores (aliás, o que lhes pedem os eleitores? Alguém sabe? Está escrito em algum documento?).
Nosso exemplo prossegue com os governantes e seus potenciais governantes (todos podem ser chamados de “políticos”, para poupar espaço e tempo de leitura) são, assim, auto-interessados e, caso não haja algum controle, tenderão a usar do monopólio legal da força e da coerção para arrecadarem o maior valor possível em reais sob a alcunha de “receita tributária” para fins os mais diversos possíveis. Eventualmente, alguns destes fins poderão trazer, não-intencionalmente, algum benefício para os eleitores, eventualmente…não.
É muito tentador, portanto, ser um político neste nosso exemplo. Mas podemos colocar alguns obstáculos à atuação desenfreada dos políticos. É verdade que eles continuam sem saber direito o que querem os eleitores, mas isso não justifica suas tentativas de tributá-los abusivamente. Há que oferecer algo em troca (como saúde pública, segurança pública, etc). Os obstáculos que podemos criar podem ter a forma de uma divisão entre eles. Crie-se um Legislativo e um Executivo que se complementem e, portanto, não possam agir individualmente. Caso você não seja um destes “amigáveis” defensores dos mensaleiros, pode também colocar neste exemplo um Judiciário independente.
O leitor, bem como eu, sabe que ainda assim há brechas para que os políticos nos roubem. Mesmo assim, como nos resumiu divinamente Churchill, a democracia ainda é o menos pior dos regimes. Bem, mas nada disso deixa os políticos felizes. Eles ainda querem, dado o poder enorme que possuem, criar tributações e tributações. Faz parte do jogo. Políticos não são atores imbecis nesta peça teatral. Eles sabem que podem criar privilégios para alguns, financiá-los com os impostos que recaem sobre todos e ainda roubar (de fato, o nome seria roubar) para si uma parte. É o famoso: “rouba, mas faz” noticiado pela imprensa, ela mesma, imperfeita, porém necessária (como nós, eleitores, imperfeitos, mas necessários).
Contudo, há alguns políticos que desejam mais. Assim que tiverem o poder, tentarão minar os controles que existem sobre suas ambições. Como fazer isso? Com a mais antiga técnica existente na história política da humanidade: a Obsolescência planejada. Funciona assim: ele usa a democracia para se eleger e aos seus aliados. Em seguida, tenta minar a democracia de todas as formas. A primeira forma é tentar vender aos eleitores a imagem de que não pode fazer tudo o que eles querem (novamente: o que eles querem?) porque há, digamos, “trezentos picaretas no Congresso”.
O passo seguinte é tentar minar a atuação dos tais trezentos. Dissemine a compra de votos e depois deixe vir à tona. Isso aumentará mais ainda a imagem de que há, de fato, trezentos picaretas contra alguns outros angelicais políticos. Claro que o leitor dirá que o Congresso é o espelho de seus eleitores, mas é esta imagem, justamente, a que se procura esconder com a primeira parte da Obsolescência planejada da democracia.
Depois (pode ser concomitantemente, claro), tentam minar o Judiciário. Tentam ocupar os cargos com aliados e/ou caluniar os que não concordam com estas práticas. Sempre, eu sei, existirá a imprensa para incomodar. Mas esta pode ser comprada com verbas públicas e sempre há quem se acovarde por um bom preço nas redações de jornais. Caso o político consiga alguns jornalistas incompetentes (do ponto de vista do mercado jornalístico) e ambiciosos, pode até lhes fornecer recursos para que abram jornais e revistas “chapa-branca”.
Pode-se destruir a política econômica que preconiza a competição com baixo desemprego e que busque a também baixa inflação por algo mais desorganizado, confuso, que não seja mais transparente para as pessoas. Eventualmente, empresas estrangeiras (que empregam nossos compatriotas) podem ser expropriadas sob um discurso de que “exploram nossos recursos”. Comprando alguns sindicalistas, isso não será impossível. Mas a democracia continua a ser minada.
O processo pode seguir, desde que existam recursos para comprar pessoas no setor público ou privado. Empresários que ganham “presentes” costumam trocar de lado tão rápido quanto políticos, sindicalistas, jornalistas, etc. Talvez alguém possa dizer, neste ponto, que um país abençoado com extrema abundância de algum recurso natural (como o petróleo) possa financiar esta Obsolescência planejada da democracia. Isso não só é possível, como também pode tomar proporções mundiais, com interferência em eleições de países vizinhos e com a compra de aliados nestes países, criando uma verdadeira quinta coluna para ser utilizada nos momentos certos.
A Obsolescência planejada da democracia tem um único objetivo: sua substituição por algo mais favorável ao ambicioso político e seus aliados. Geralmente é um regime autoritário e/ou totalitário como os que conhecemos. Embora a democracia tenha uma vida útil muito longa (e desejadamente longa, diriam os eleitores que não curtem a concentração de poder), ela é minada e trocada por algo mais adequado aos desejos de poucos.
Do meu humilde ponto de vista, esta Obsolescência merecia uma análise maior em vídeo-documentários e artigos de jornais do que a que supostamente existe em alguns setores econômicos. Não que eu não tenha críticas a algumas práticas de mercado, mas me parece que se há dois problemas de gravidade distintas do ponto de vista social, o mais grave deveria ser atacado primeiro. Não acha?